Carlos Massari e Aurélio Araújo
Votações envolvem rejeição: quando você precisa escolher alguém para vencer uma eleição, não é incomum se basear antes em quem você não quer que ganhe para depois escolher quem você quer ver vitorioso.
Não há dúvida de que esse é um critério para selecionar o vencedor da Bola de Ouro, prêmio da revista France Football, eleito por jornalistas esportivos de todo o planeta.
Frustraram-se as expectativas de milhões de pessoas de que esse seria o ano de Vinícius Júnior. Seria uma conquista a mais na carreira de Vini, coroando sua atuação não só dentro, mas também fora de campo.
Talvez aí resida o problema. O Brasil é um país com níveis altos de racismo, mas já foi pior. Nas últimas décadas, fomos forçados a ter essa discussão que evitamos por tanto tempo, enquanto muitos ainda acreditavam no fantasioso mito da democracia racial.
Estamos longe de ter superado esse problema, que começa na escravidão, mas não termina lá. A passos lentíssimos, o debate sobre a estrutura racial injusta da nossa sociedade avança, ainda que com as conquistas desse avanço constantemente ameaçadas.
A Espanha não é racista. Mas…
Mesmo assim, pode-se dizer que estamos à frente de outros países, onde a discussão sobre o racismo ainda é incômoda demais para ser tão colocada em pauta como Vini Jr. faz.
E ele o faz só por existir. Não é como se ele fosse quem tivesse trazido isso à tona, os estádios espanhois sempre foram uma válvula de escape para o racismo.
Em maio de 2023, num dos vários episódios em que Vini foi alvo de racistas, no estádio Mestalla, em Valência, ele reagiu. Apontou ao árbitro vários daqueles que cometiam esses atos deploráveis contra ele.
Seu ato de coragem foi respondido com duas atitudes muito diferentes. De um lado, muitos se juntaram a Vini, para discutir não só racismo no futebol, mas na própria sociedade espanhola. No TikTok, por exemplo, surgiu a trend “España no es racista, pero…” (a Espanha não é racista, mas…), em que espanhóis e imigrantes de pele escura relatavam casos chocantes de racismo sofridos no país.
Essa atitude era uma resposta à outra, bem mais comum, representada na fala de Josep Pedrerol, apresentador do programa El Chiringuito, uma das mais populares mesas redondas espanholas. Como consequência do que ocorreu, Pedrerol fez um discurso em que dizia: “Valência não é racista, mas há racistas em Valência. A Espanha não é racista, mas há racistas na Espanha”.
Mais do que debater a semântica do que ele disse, notemos que existe uma preocupação um tanto quanto bizarra de defender a reputação do país antes de tudo. Primeiro, protege-se a Espanha. Depois, como um problema menor, vem o racismo.
A culpa recai sobre a vítima
É comum que a culpa pelas agressões racistas que sofre recaiam sobre o próprio Vinícius Jr. Supostamente, “ele provoca”. Esse discurso não é restrito a uma ideologia ou a um espectro político – Borja Sanjuan Roca, presidente do Partido Socialista de Valencia, chegou a dizer que o brasileiro “é uma vergonha para o futebol”.
A “provocação” de Vini é ser ele mesmo. É gingar, bailar, exibir o futebol com os traços que marcaram o Brasil pentacampeão mundial. E é também não ficar quieto quando é ofendido, não tapar os ouvidos para os gritos que vêm da arquibancada.
Quando aponta torcedores nas arquibancadas fazendo gestos racistas, Vini causa à Espanha um enorme incômodo: faz com que ela se olhe no espelho. Faz com que a sujeira escondida debaixo do tapete seja exposta. Faz com que, enfim, o racismo precise ser discutido. Por isso, ele é mais odiado que o problema.
O Diario Sport, um dos principais jornais esportivos espanhóis, publicou no dia da premiação da Bola de Ouro um artigo assinado por Lluis Miguelsanz que afirma que Rodri ganhou o prêmio “pelos valores”. “Vinícius tem muito o que aprender. Seus protestos e reclamações, seus atos reprováveis sobre o gramado e a sensação de que não aprende custaram votos a ele”, diz.
O negro precisa ficar quieto para ser aceito
A seleção espanhola foi campeã europeia com dois jovens destaques negros e filhos de imigrantes: Lamine Yamal e Nico Williams. Fica claro que a Espanha vê esses dois atletas como um contraponto a Vinícius, uma demonstração de que não há racismo.
No sábado, o Barcelona goleou o Real Madrid por 4 a 0 jogando na casa do adversário. Houve gritos e provocações da arquibancada contra Yamal. “Eu não percebi os insultos, não dei muita atenção a eles. Não há espaço para essas coisas no futebol, mas eu estava pensando sobre a goleada de 4 a 0, a performance do time e a próxima partida”, disse o atacante ao ser questionado sobre o assunto.
Essa, infelizmente, é a postura e os valores que se espera de Vinícius. Pode-se, no máximo, mencionar que houve insultos racistas, mas eles são só um detalhe. Afinal, a Espanha, cof cof, não é um país racista.
*Carlos Massari e Aurélio Araújo são jornalistas e criadores do Copa Além da Copa, projeto que debate história, geopolítica, cultura e sociedade, entre outros temas ligados ao mundo dos esportes.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.