Em junho de 1995, o escritor e filósofo Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, publicou um ensaio enumerando 14 características comuns do fascismo. Nele, Eco busca explicar o motivo pelo qual “a palavra fascismo se tornou sinédoque, isto é, uma palavra que pode ser usada para diferentes movimentos totalitários”, sendo utilizada para descrever toda sorte de ditadura, desde “a primeira ditadura de direita que tomou conta de um país europeu” até movimentos na África e na América Latina.
Sua tese é que o fascismo, por excelência, é vago. Contudo, Eco continua, “apesar da imprecisão do termo, acho que é possível fazer uma lista de elementos que são típicos do que eu gostaria de chamar de Fascismo Eterno” – que ele também chama de Ur-Fascismo.
O grande motivo por trás do ensaio, como estabelece o autor já no princípio, é determinar o que, exatamente, está sendo combatido quando se fala na luta contra o fascismo. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar solenemente que ‘eles’ não podem repetir o que fizeram. Mas quem são ‘eles’?”. Difícil dizer.
Afinal, o fascismo, diferente do nazismo, não tem praticamente nada realmente seu – nem estética, nem arte, nem linguagem, nem valores, nem mesmo, em muitos sentidos, ideologia; ele abraça tudo e permanece propositalmente vago exatamente para tornar-se universal. Como algo que é, fundamentalmente, nada mais, nada menos que uma forma de nacionalismo extremo, o fascismo assume as características e contornos de qualquer que seja a nação, a cultura e o momento histórico que o produz.
Por isso mesmo, defende o autor, é “fascista”, e não “nazista”, o termo usado de maneira generalista para descrever qualquer pessoa, ideia ou instituição que se aproxime das atrocidades intelectuais defendidas por esses movimentos; o nazismo, ao contrário do fascismo, tem uma expressão estética e simbólica própria que o restringe a um certo parâmetro mais facilmente percebido e menos impunemente emulado, por ser óbvio.
“Só existiu um Nazismo, […] o jogo fascista pode ser jogado em muitas formas, e o nome do jogo não muda. […] O termo ‘fascismo’ adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista”, diz Eco, completando: “o fascismo foi certamente uma ditadura, mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura, mas antes pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que normalmente se pensa, o fascismo na Itália não tinha nenhuma filosofia em particular”.
Afinal, “é possível conceber um movimento totalitário que consiga reunir monarquia e revolução, exército real e milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação estatal que exaltava a violência e o livre mercado?”. De acordo com Eco, enfim, o fascismo é um “totalitarismo difuso, uma colagem de diferentes ideias filosóficas e políticas, uma colmeia de contradições”.
Por excelência, o fascismo idealiza um passado mítico – e normalmente artificial, inventado ou extremamente deturpado – como uma “Idade de Ouro” nacional que deve ser perseguida e recuperada; para o fascismo italiano, por exemplo, foi o Império Romano. O fascismo, assim, se baseia na nostalgia por “valores tradicionais” – família centralizada, religião, patriotismo, militarismo, obediência à autoridade e rejeição de ideias e valores contemporâneos como uma ameaça à identidade nacional e a esses mesmos valores tradicionais.
Paradoxalmente, por todo o seu amor ao tradicionalismo, o fascismo normalmente se posiciona como uma força para “mover uma nação para o futuro”. Suas justificativas intelectuais costumam incluir pensadores extremamente tradicionalistas e conservadores e, com frequência, a deturpação e reinterpretação totalmente desonestas e intelectualmente falaciosas das ideias de outros pensadores para se adequarem à sua lógica.
Rejeição ao modernismo:
O fascismo tem desprezo pela intelectualidade, pela academia – muitas vezes classificada como elitista ou tendenciosa -, pelo progresso científico e pela secularização do conhecimento, muito embora tenha sido em várias ocasiões, concomitantemente, uma ideologia que historicamente flertou ela própria com o ateísmo ou com a descentralização do cristianismo. O Iluminismo, a Idade da Razão, é visto como o começo de toda a depravação moderna, e a própria modernidade é o ápice da decadência cultural, social e moral.
O fascismo se apega a dogmas, pode ser definido como irracionalismo, e acredita que “pensar é uma forma de castração. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas”, que vão de encontro com a rigidez estática da construção de mundo fascista.
Culto à ação pela ação:
O fascismo põe grande ênfase na masculinidade, e a masculinidade fascista é associada não aos valores pós-industriais de masculinidade construídos no século XIX – deve-se lembrar que o fascismo nasce no início do século XX, e os anos 1800-1900, portanto, são a sua “modernidade” – mas às noções de masculinidade mais primitivas e físicas anteriores. Sendo assim, há imensa ênfase na fisicalidade, na agressividade e na violência, tanto individual quanto política – pois, para o fascismo, seus objetivos políticos são atingidos através da ação violenta.
A ação, sendo bela por si só, deve ser tomada antes, ou mesmo sem, qualquer reflexão prévia. Pensar, como já estabelecido anteriormente, é uma forma de emasculação vista com desdém. O intelectual é substituído enquanto figura digna de admiração pelo herói militar.
Discordância é traição:
Toda discordância moral ou intelectual das ideias defendidas pelo regime, e qualquer crítica a ele direcionada, é um ato de traição não apenas contra o próprio regime, mas contra a nação. O espírito crítico faz distinções, e isso é uma forma de modernismo que se alinha a valores que devem ser extirpados.
Na cultura moderna a comunidade científica elogia a discordância, como uma forma de aprimorar o conhecimento – algo que vai totalmente na contramão da lógica controladora e anti reflexão do fascismo, que se estrutura em cima da supressão da liberdade de expressão, no coletivismo intelectual e na eliminação sumária de qualquer dissidência política e intelectual, resultando normalmente na perseguição de intelectuais e vozes discordantes.
Medo das diferenças:
O primeiro apelo de um movimento fascista ou prematuramente fascista é contra intrusos; assim, o Ur-Fascismo é racista, homofóbico, xenofóbico, religiosamente intolerante e agressivamente preconceituoso por definição. Ele explora o medo do “outro” como arma de propaganda e controle social, criando um inimigo fictício e coletivo que está em todo lugar como ameaça à cultura.
O mito da superioridade de sua própria raça ou nação é estabelecido e repetido, e a imigração, a diversidade cultural, religiosa e sexual e as diferenças de pensamento são vilificadas.
Apela à frustração social:
Um dos mais típicos traços do fascismo histórico foi o apelo a classes sociais frustradas ou marginalizadas, sejam elas veteranos de guerra abandonados pelo Estado, trabalhadores em circunstâncias precárias, uma elite que vê sua posição ameaçada, ou uma classe média frustrada; grupos, enfim, que sofrem os efeitos de uma crise econômica, estão desiludidos com os governos e as instituições, sentem-se à margem da sociedade ou ignorados pelo Estado, que abrigam sentimentos de humilhação política, ou que estão assustados pela pressão de grupos sociais subalternos.
É importante, nesse sentido, se lembrar que em sua gênese, o fascismo, o nazismo e outras ideologias afins surgem num contexto pós-Primeira Guerra Mundial, que matou, mutilou e destruiu psicologicamente milhões de homens, arruinou a Europa financeiramente, acelerou em muito o declínio europeu enquanto poder hegemônico militar, econômico e cultural no mundo, e desiludiu uma geração inteira com o governo e as instituições vigentes, e foi particularmente bem aceito nos países derrotados e total e absurdamente humilhados pelo Tratado de Versalhes – como a Alemanha – e também em lugares que estavam do lado vencedor da guerra, mas que não obtiveram o que queriam do conflito, e tiveram muito mais desvantagens que vantagens em sua participação – como a Itália.
Por excelência, portanto, ele explora as frustrações, os temores e os problemas de classes desamparadas e em declínio – seja esse declínio econômico, social ou mesmo cultural – prometendo simultaneamente um retorno a um passado próspero, estável e do qual a nação possa se orgulhar, e uma revolução que varrerá as instituições corruptas e desacreditadas que essas populações já não mais apoiam da face da terra, e, ao mesmo tempo, esforçando-se para colocar a culpa das adversidades enfrentadas na atualidade em grupos minoritários e forças externas a serem temidas.
A obsessão por conspiração:
Para que o fascismo funcione, seus seguidores devem se sentir sitiados; há necessidade de conspirações secretas partindo da elite, do Estado e das instituições contra o bem do povo ou do próprio Estado. O fascismo se alimenta de paranoia e desconfiança, e por consequência busca e estabelece inimigos internos e externos para unir a população contra ideias e grupos comuns.
A forma mais fácil de conseguir esse resta é apelando à sua xenofobia, mas medo de outros partidos políticos ou de grupos marginalizados e subalternizados por ser igualmente municiado para esse fim. O resultado último, enfim, é a criação de mais e mais justificativas para a violência, a repressão, o controle social e preconceitos diversos.
A figura do inimigo é humilhante e humilhada:
Esse inimigo – mais uma vez, seja ele interno ou externo, uma instituição, um grupo ou o próprio estado – é, ao mesmo tempo, forte e fraco. Através de uma contínua oscilação no foco retórico, os inimigos são ao mesmo tempo, figuras de poder e riqueza obscenas, com influência ilimitada, que devem ser temidos e odiados – afinal, só assim sustenta-se o mito da ameaça sempre em sua porta – e também figuras patéticas, fracas e inferiores – pois só assim sustenta-se a ideia da superioridade moral, racial e intelectual do regime vigente e justifica-se a desconsideração de outros modos de vida e pensamento.
O fascismo opera em paradoxos: é necessário haver uma ameaça constante, mas também são necessárias constantes e contínuas vitórias sobre essa ameaça; se qualquer um dos dois faltar, a coesão coletiva se esvai e o sistema desmorona.
Pacifismo é confraternizar com o inimigo:
“Para o Fascismo Eterno, não existe a luta pela vida: em vez disso, a vida é vivida para lutar”. Eco fala de suas experiências quando menino, vivendo durante a ditadura de Mussolini e a Segunda Guerra Mundial: “Em maio, ouvimos dizer que a guerra tinha acabado. A paz me deu uma sensação curiosa. Tinham me dito que a guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano.”
A glorificação da guerra, do heroísmo militar e do militarismo enquanto ideal, estética e meta são características fundamentais do fascismo; o conflito e a guerra são instrumentos para a renovação nacional e a autoafirmação da nação enquanto coletivo e também dos seguidores enquanto indivíduos, além de ser ferramenta de educação de novas gerações nos valores nacionais. Tempos de paz criam “homens fracos”, e a falta de conflitos são sinais de enfraquecimento ou de conivência com o inimigo. Na linha do culto à ação, o fascismo despreza a diplomacia, a negociação e o processo jurídico.
Desprezo pelos fracos:
Ideias de meritocracia, elitismo e sobrevivência do mais forte, quase um darwinismo social, são aspectos típicos de qualquer ideologia reacionária. A força, o poder, a virilidade e a proeza física são exaltadas como qualidades principais tanto do estado quanto do indivíduo, e todos aqueles – enquanto pessoas, grupos ou instituições – percebidos como fracos e inferiores são vítimas de discriminação, violência, humilhação e mesmo extermínio sancionados pelo estado, seja como política oficial ou como agenda extra-oficial, através de impunidade e incentivos através da construção cultural e psicológica da nação.
Todos são educados para se transformarem em heróis:
Na ideologia do Fascismo Eterno, ser “herói” é a norma, e o “heroísmo” é um conceito utilizado como arma de propaganda e de acobertamento. O heroísmo exalta figuras políticas, mas, acima de tudo, militares, e põe grande ênfase no sacrifício e no valor da autodestruição pela nação – o dulce et decorum est pro patria mori da Grande Guerra, com raízes na antiguidade.
Nesse sentido, o fascismo se alinha historicamente com as narrativas de heroísmo perniciosas que serviam para manter a moral da nação alto em períodos de conflito – que, como já estabelecido, dentro do fascismo são eternos – e como justificativa para acobertar a responsabilidade do governo e do Estado nas mortes e mutilações de sua juventude em nome do orgulho nacional, além de servir como arma de propaganda para convencer novas gerações de homens do valor de seu serviço militar, e populações civis da justiça das causas pelas quais são perdidos seus pais, filhos, irmãos e maridos, e pelas quais seus sacrifícios são requeridos, tudo visando a manutenção de um complexo industrial bélico. Este culto ao heroísmo, assim, é estritamente ligado ao culto à morte.
Machismo e armas:
O machismo implica, ao mesmo tempo, um desdém pelas mulheres e uma intolerância – e condenação – a hábitos sexuais fora do padrão, desde o celibato até a homossexualidade. O fascismo, assim, cria uma sociedade que despreza todo o feminino, seja nas próprias mulheres, seja na “feminização” dos homens, mas que, ao mesmo tempo, exige certos padrões de feminilidade das mulheres, que por excelência são relegadas a papéis subordinados, e, portanto, precisam, necessariamente, ser associadas a qualidades e valores percebidos como inferiores.
Populismo seletivo e carismático:
Uma noção de populismo criada para representar “A Voz do Povo”, mas que na realidade é a voz de um grupo seleto de pessoas que tem “a voz mais alta” nos espaços de discussão e na retórica veiculada, com as próprias ideias desse grupo sendo muitas vezes manipuladas através de gatilhos emocionais pensados para gerar certo tipo de reação, é parte fundamental da construção de uma liderança fascista.
O fascismo se estrutura ao redor de um líder carismático que se apresenta como um pater famílias para o povo – um salvador, um messias – com imensa capacidade de mobilizar massas e manobrar opiniões para refletir seus interesses políticos. Esses líderes se apoiam em escolhas simbólicas, estéticas e retóricas específicas e muito bem pensadas – de acordo com Eco, o jeito fascista de se vestir foi “muito mais influente, com suas camisas negras, do que Armani, Benetton ou Versace jamais poderiam ser” -, e normalmente tem como principais armas seu carisma, sua capacidade de oratória, e uma imagem meticulosamente construída, todas municiadas através de propaganda e do controle do fluxo de informação e de opiniões, combinadas com o culto de personalidade e a eliminação sumária de rivais políticos e dissidência intelectual.
Linguagem própria:
O Fascismo Eterno fala a Novilíngua de Orwell; ele se apoia em um linguajar repetitivo, simplificado e limitado – isso pode ser percebido, por exemplo, em todos os livros didáticos do Nazismo e do Fascismo, que faziam uso de um vocabulário pobre e de sintaxe elementar, extremamente limitados e simplistas – a fim de limitar os instrumentos para o desenvolvimento de raciocínios complexos e críticos. A linguagem é manipulada visando o controle e a deturpação de informações e da percepção da realidade, e a propaganda, a desinformação e a retórica oficial são ferramentas de controle social.
O Fascismo Eterno
De acordo com Eco, o fascismo é pernicioso exatamente por ter um apelo tão amplo na medida em que é completamente mutável, vago e sem identidade definida, e que se baseia nos medos e nas frustrações específicas de uma nação num determinado tempo, local e contexto para construir sua retórica. “O fascismo italiano convenceu muitos líderes liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à ameaça comunista”
Para nós, Eco prevê um futuro sombrio: “Em nosso futuro, desenha-se um populismo qualitativo de TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a ‘voz do povo’”. Do papel da resistência, ele diz: “Hoje, na Itália, existem algumas pessoas que se perguntam se a resistência teve um impacto militar real no curso da guerra. Para a minha geração, a questão é irrelevante: compreendo imediatamente o significado moral e psicológico da resistência”. Em suas últimas falas, Umberto Eco, enfim, sentencia: “O Ur-Fascismo pode voltar ainda com as aparências mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar para cada uma de suas novas formas, todo dia, em todas as partes do mundo”