Brasília, 17/01/2025

Acre – Comunidades extrativistas do Vale do Juruá debatem projetos de carbono

Após colaborar na implementação do conceito de reservas extrativistas, na década de 1980, a organização liderada pela antropóloga Mary Allegretti busca assegurar fonte de renda às populações da floresta pelos serviços ambientais prestados por elas e pelas unidades de conservação. Medida se mostra necessária em meio ao avanço do desmatamento e do fogo nestas áreas.

Fabio Pontes
dos varadouros de Cruzeiro do Sul

Em meio ao avanço no desenvolvimento de projetos privados do chamado crédito de carbono na Amazônia, muitos até com denúncias de grilagem de terras públicas, conflitos fundiários com as famílias de ocupação tradicional e a ausência de consulta antecipada às comunidades impactadas, cresce a preocupação de que uma iniciativa vista como promissora na preservação da floresta caia em descrédito.

A proposta inicial de assegurar a compensação financeira às populações tradicionais por manterem a floresta em pé, passou a ser vista como uma grande oportunidade de lucro (business) por empresas e corporações no “mercado verde”. Todavia, numa tentativa de preservar a essência dos chamados pagamentos por serviços ambientais, iniciativas se fortalecem para (re) colocar as comunidades da Amazônia como protagonistas do processo.

É o exemplo do Projeto Seringueiras, desenvolvido pelo Instituto de Estudos Amazônicos (IEA), organização da sociedade civil liderada pela antropóloga Mary Allegretti. Entre as décadas de 1970 e 1980, Allegretti acompanhou a luta e a resistência dos seringueiros acreanos contra suas expulsões dos seringais, que iam sendo transformados em pasto para o gado. Ela própria teve papel crucial na organização política dos movimentos, atuando ao lado de lideranças como Chico Mendes.

Mary Allegretti ainda foi figura-chave no desenvolvimento do conceito das reservas extrativistas – a reforma agrária diferenciada para as necessidades das populações da floresta. Mais de três décadas após a criação das primeiras reservas extrativistas do Brasil, Allegretti tenta posicionar as comunidades das unidades de conservação como lideranças na elaboração e na execução de projetos de crédito de carbono comunitário – onde todas as famílias sejam beneficiadas com a comercialização do carbono estocado em seus territórios.

Uma iniciativa vista como capaz de reduzir os impactos do avanço do desmatamento sobre as reservas extrativistas. Desde 2019, por exemplo, a Resex Chico Mendes ocupa as primeiras posições entre as UCs líderes em desmatamento e em queimadas na Amazônia Legal. Com pouca ou nenhuma política pública de valorização da economia de base florestal, muitos moradores ampliam as áreas ocupadas pela agricultura e pecuária. As invasões são outro grave problema.

Agora, a implementação de projetos de crédito de carbono pode ser uma alternativa de renda para as comunidades extrativistas da Amazônia – respeitando e assegurando sua relação tradicional com a floresta.

Seca do rio Juruá em Cruzeiro do Sul; em 2024, as comunidades do Vale do Juruá foram intensamente impactadas por eventos climáticos extremos (Foto: Juan Diaz)

Diálogos na base

Para apresentar este “bicho de sete cabeças” às populações moradores das reservas extrativistas, o IEA realiza oficinas com uma linguagem acessível sobre o que seja o mercado de carbono, e como elas podem ser beneficiadas. Em dezembro, Varadouro participou de um desses encontros. Entre os dias 9 e 10, em Cruzeiro do Sul, lideranças de três UCs do Vale do Juruá tiveram a oportunidade de ampliar os conhecimentos sobre as iniciativas que recompensam, financeiramente, as populações que mantêm a floresta em pé, e debater sobre como os eventos climáticos impactam suas sobrevivências.

Participaram da oficina representantes das Resex Alto Juruá, Riozinho da Liberdade e Alto Tarauacá. O evento contou com o apoio do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), do Fundo de Defesa Ambiental (EDF) e do Instituto Fronteiras.

Em 2024, as comunidades extrativistas do Vale do Juruá foram intensamente impactadas por eventos extremos do clima. No começo do ano, uma grande enchente dos rios provocou a destruição dos roçados e criações. Na região, a maior parte das famílias sobrevive da pequena agricultura familiar, baseada no plantio de macaxeira para a produção de farinha. Roçados estes que são mantidos próximos às margens dos rios. A cada evento de cheia extrema, os cultivos são perdidos.

Já nos meses do “verão amazônico”, os efeitos são outros: mananciais em níveis críticos de vazante que deixam comunidades isoladas e em situação de insegurança hídrica. Além disso, as temperaturas altas e os dias prolongados sem chuvas provocam o surgimento de pragas mais resistentes nos roçados de macaxeira, colocando em risco a renda das famílias ribeirinhas.

Apesar de ser uma das regiões mais bem preservadas da Amazônia, o Vale do Juruá é pressionado pelo avanço da agropecuária. O resultado é o aumento nas taxas de desmatamento e de queimadas na região. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Cruzeiro do Sul foi o quarto município acreano com mais registro de focos de queimadas em 2024: 779.

Superou até mesmo os municípios do Vale do Acre, que concentra 70% de toda a área desmatada do estado, já consolidado pela atividade agropecuária. O vizinho Tarauacá ficou na segunda posição entre os recordistas de fogo, com 1.156 focos. Desde 2019 Tarauacá figura entre os municípios da Amazônia Legal líderes em área desmatada e focos de calor.

Toda essa devastação implica em mais emissões dos gases do efeito estufa para a atmosfera, o que contribui para o agravamento das mudanças climáticas que impactam o modo de vida das populações tradicionais da floresta. Este foi o principal tema abordado pelo professor Igor Oliveira, do Campus Floresta da Universidade Federal do Acre (Ufac).

De forma didática e numa linguagem simples, Oliveira debateu com as comunidades sobre como as ações humanas aceleram os processos de mudanças climáticas na Terra ao longo dos últimos dois séculos. O biólogo explicou como a emissão de dióxido de carbono e outros gases poluentes a partir da queima de combustíveis fósseis e das próprias queimadas agravam o cenário de crise climática.

Mais carbono liberado, maior a crise climática

Como destacou Igor Oliveira, as florestas tropicais exercem papel crucial para amenizar os efeitos da crise climática. Uma de suas funções básicas é estocar carbono que seriam emitidos para a atmosfera, potencializando o chamado efeito estufa – ou o aquecimento global.

Por conta desta grande capacidade de reter o gás carbônico, as florestas tropicais do mundo – incluindo a Amazônia – passaram a ser um dos grandes ativos no que passou a ser chamado de mercado de carbono. Grandes corporações e governos dos países desenvolvidos apoiam financeiramente iniciativas que mantêm e preservam as florestas de pé (estocando carbono), como forma de amenizar os impactos de suas poluições.

O desmatamento e as queimadas na Amazônia são a principal contribuição do Brasil na emissão dos gases do efeito estufa, o que agrava a crise global do clima (Foto: Samuel Moura – Secom/AC)

A partir disso surgiram os programas de pagamento por serviços ambientais, como os REDD – Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação. Em meio ao aumento das pressões do avanço do desmatamento na Amazônia, os projetos de REDD podem ser vistos como mais uma forma das comunidades tradicionais da região terem acesso a uma nova fonte de renda, mantendo a floresta em pé.

Por meio do Projeto Seringueiras, o IEA quer preparar e apoiar as populações em territórios extrativistas para a implementação de projetos de carbono que lhes assegurem renumeração por contribuírem com a preservação da Amazônia, sem alterar seu modo de vida tradicional. A partir das oficinas realizadas com as comunidades, o instituto busca valer um dos princípios básicos para a adoção de bons projetos de REDD: o consentimento livre, prévio e informado das comunidades.

Nos últimos anos muitos projetos privados que visam apenas ao lucro ameaçam a permanência das famílias dos antigos seringais em seus territórios. No Acre aumentou o caso de conflitos fundiários por grandes corporações que compram áreas de floresta para vender carbono, e exigem a expulsão de famílias que estão na região há gerações.

A partir dos diálogos e trocas de experiências nos dois dias de oficina em Cruzeiro do Sul, os moradores das três reservas extrativistas disseram estar mais preparados para lidar com possíveis assédios de pessoas ou empresas interessadas em desenvolver projetos de carbono dentro de seus territórios.

Outra proposta das oficinas realizadas pelo IEA é fazer com que os participantes sejam multiplicadores dos conhecimentos sobre projetos de REDD em suas comunidades, preparando-as para o desenvolvimento de possíveis propostas coletivas, onde todos possam ser beneficiados e recompensados por aquilo que sabem fazer de melhor: proteger a Amazônia.

Vozes da Floresta

Presidente da Associação Feminina Força da Mulher Rural do Rio Liberdade – (Associação Mulher Flor), da Resex Riozinho da Liberdade, Maria Renilda Santana da Costa, ou simplesmente a Dona Branca, como é conhecida, diz ver a necessidade das comunidades ampliarem mais e mais os seus conhecimentos sobre o mercado de carbono para que elas, sim, sejam as verdadeiras beneficiadas. “O carbono é nosso, é do nosso território”, ressalta ela.

“Essa questão da venda de carbono mantendo a floresta em pé eu acredito, no meu entendimento, que a gente precisa aprofundar mais. Os moradores da comunidade precisam enteder que o carbono traz um resultado positivo se ele entender melhor como funciona isso, o que a floresta traz de melhoria para as famílias que vivem lá”, afirma Dona Branca. “Na oficina ficou claro que a redução do desmatamento vai gerar o pagamento por serviços ambientais por meio do mercado de carbono.

Dona Branca, presidente da Associação Mulher Flor, da Resex Riozinho da Liberdade (Foto: Fabio Pontes/Varadouro)

A Resex Riozinho da Liberdade é uma das mais jovens reservas extrativistas do Acre. Foi criada como uma zona de amortecimento para reduzir os impactos da pavimentação da BR-364 entre Cruzeiro do Sul e Rio Branco. Está localizada bem nos limites entre Tarauacá e Cruzeiro do Sul. Desde 2019, os municípios localizados ao longo do traçado da rodovia estão entre os líderes de desmatamento e queimadas na Amazônia Legal.

Os impactos também são detectados até no Alto Juruá, em Marechal Thaumaturgo, na fronteira com o Peru. É lá onde está a primeira reserva extrativista criada no Brasil; a Resex Alto Juruá.

“Aqui nós tivemos uma discussão de alta qualidade, falando sobre o mercado de carbono, sobre o REDD. Conseguimos entender, em parte, sobre questões que afetam o nosso modo de viver em nossos territórios. Essas capacitações são uma forma da gente se proteger de contratos enfeitados de coisas boas, mas que por trás podem ser ruim para a comunidade”, afirma Orleir Moreira, presidente da Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá (Asareaj).

Orleir Moreira, presidente da associação de moradores da Resex Alto Juruá (Foto: Fabio Pontes/Varadouro)

Para Daniel Lima, presidente da Associação dos Seringueiros e Agricultores da Reserva Extrativista do Alto Tarauacá (Asareat), a oficina é uma oportunidade para que mais famílias de seu território adquiram os conhecimentos sobre o mercado de carbono. Segundo ele, por a Resex Alto Tarauacá estar localizada numa região de difícil acesso, as comunidades ficam quase impossibilitadas de se protegerem do assédio de projetos mirabolantes de carbono.

“Este é um debate muito importante para gente levar para o território, para mostrar a pras pessoas que realmente protegem a floresta de ganhar dinheiro com isso. É importante também levar estas oficinas para dentro das comunidades para quelas tenham o conhecimento da causa”, afirma ele.

Daniel Lima, presidente da associação de moradores da Resex Alto Tarauacá (Foto: Fabio Pontes/Varadouro)

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