O cenário das turbulências ganhou novas faíscas após a suspensão das emendas parlamentares impositivas pela Corte, em agosto, mas as raízes do problema remontam a capítulos anteriores e se ligam às disputas em torno do orçamento secreto, considerado inconstitucional pelo Supremo ano final de 2022, ainda na transição de governo.
O combo aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara no último dia 9 engloba quatro medidas, algumas mais, outras menos alvejadas por integrantes de diferentes partidos. O rol inclui a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 8/2021, que impõe limites para decisões monocráticas; a PEC 28/2024, que fixa a hipótese de suspensão de decisão do STF por parte do Congresso; o Projeto de Lei (PL) 658/2022, que cria nova hipótese de crime de responsabilidade para membros da Corte; e o PL 4754/2016, que considera crime de responsabilidade de ministro do STF aquilo o que o texto chama de “usurpação de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo” ou, em outras palavras, o “ativismo judicial”, expressão corriqueira no jargão bolsonarista.
Das quatro, a proposta que mais avançou até agora foi a PEC 8, aprovada pelos senadores em 2023 em meio a uma divisão mesmo entre a bancada do PT – na ocasião, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), anunciou posição favorável ao texto. Outras pautas seguem no radar de bolsonaristas e alguns aliados, que têm sido os principais vocalizadores dessa agenda. É o caso da proposta que prevê a fixação de mandatos para membros da Corte, materializada na PEC 16/2019, atualmente na CCJ do Senado.
Política X Justiça
A cientista política Grazielle Albuquerque, que pesquisa a relação entre política e sistema de Justiça, pontua que há uma dimensão jurídica no debate sobre eventual definição de mandato para ministros do STF, mas destaca o pano de fundo político que foi dado às pautas envolvendo a Corte a partir dos interesses de personagens do campo da direita. “A reforma do Judiciário, que vai completar 20 anos, já trazia essa pauta [do mandato] na sua proposta inicial, no período de tramitação, mas depois isso foi retirado do processo e o assunto ficou meio esquecido, retornando com o passar dos anos, à medida que o STF foi ficando mais conhecido. Essa discussão aparece toda vez que se discute quantos ministros um presidente da República vai ter que indicar ao longo da gestão, por exemplo. Mas existe uma divisão entre o movimento mais histórico [que remonta à reforma do Judiciário] e a atualidade”, frisa.
“Incidentalmente, a discussão sobre a aposentadoria dos ministros foi criando um certo caldo e, no meu entender, se passou a discutir a figura dos membros da STF e também o funcionamento da Corte. Isso está presente não só na discussão sobre mandatos, mas também na pauta sobre decisões monocráticas e uma série de outras questões. Vejo três elementos: superexposição da Corte, maior protagonismo do STF do ponto de vista político e também uma composição mais à direita no Congresso que se forma e que começa a olhar uma série de sinalizações ao STF mirando 2026 e também o futuro depois disso”, acrescenta a pesquisadora.
Decisões individuais
O debate no Legislativo sobre as decisões monocráticas fermentou principalmente em momentos em que a Corte reviu decisões anteriormente tomadas pelos parlamentares. Foi o que ocorreu com o piso nacional da enfermagem, aprovado pelo Congresso em 2022 com ampla margem de apoio e após uma saga que envolveu uma queda de braço de entidades representativas dos trabalhadores com o setor empresarial. A briga foi parar na Justiça e o ministro Luís Roberto Barroso suspendeu o pagamento do piso em uma liminar que causou ecos nas diferentes bancadas da Câmara e do Senado – neste último, por exemplo, a proposta do piso havia sido aprovada por unanimidade.
Apesar de a maioria do Legislativo – composta por integrantes de direita – não ser exatamente inclinada à agenda trabalhista, a decisão do STF foi entendida por parte dos parlamentares como uma afronta às prerrogativas do Congresso, o que alimentou os ataques da rede bolsonarista à Corte. Apesar de o debate em torno da proposta ter sido midiaticamente capturado pelas narrativas da extrema direita, Grazielle Albuquerque afirma que a medida tem uma faceta jurídica.
“Não necessariamente digo que a proposta que está no Congresso seja boa, mas uma discussão mais ampla e mais técnica sobre as decisões monocráticas é uma discussão muito cara hoje inclusive aos especialistas da área. Se o Legislativo tivesse o cuidado de fazer dessa forma, acho que isso teria até mais apoio, porque é algo que se coloca como uma decisão importante, tanto é que a própria Rosa Weber, num dos seus últimos atos como presidente do STF antes de se aposentar, colocou em pauta uma mudança no regime interno do STF que colocava um freio nessa questão das decisões monocráticas”, resgata.
A pesquisadora menciona também a postura que vem sendo adotada pelo ministro Alexandre de Moraes, pivô de diferentes disputas de narrativa envolvendo a extrema direita e alvo constante de ataques do segmento por conta de decisões relacionadas ao 8 de janeiro e outros temas. “São decisões, para muitas pessoas, polêmicas, e que ele tem o cuidado de, embora tomando-as de maneira monocrática, encaminhar de maneira rápida para serem avaliadas pelo pleno do STF. Em geral, existe uma discussão entre os especialistas para que se fortaleça o STF como instituição, e não os seus personagens. Isso passa por uma mudança que dê mais uma ideia colegiada do que o STF pensa, e não o que determinado ministro pense.”
“Se isso tem sido tomado dentro desse rol de medidas que parecem feitas mais para passar recado de contenção do STF do que exatamente para enfrentar o problema, resta saber até que ponto o próprio Supremo vai pegar essa questão colocada pela Rosa Weber e enfrentar isso. Acho que o Supremo deu um sinal na época da aposentadoria da ministra, mas não sei se num nível institucional ele vai acelerar esse passo”, adiciona a pesquisadora.
Pesquisa
É em meio a esse cenário que o combo anti-STF vem encontrando terreno fértil no Congresso. O Painel do Poder, pesquisa de opinião publicada pelo portal Congresso em Foco, mostrou neste mês que 57,35% dos parlamentares concorda parcial (8,82%) ou totalmente (48,53%) com a ideia de estabelecimento de mandato para membros do STF, por exemplo. Somente 14,71% se disseram indiferentes à ideia. O levantamento escuta membros da Câmara e do Senado. A pesquisa identificou também que a pauta encontra algum nível de adesão nos diferentes segmentos do Legislativo, divididos em grupos de “governistas”, “independentes” e “opositores”” de acordo com a autodeclaração de cada um. Considerando uma escala de 1 a 5, o grau de alinhamento à PEC foi de 2,63 no primeiro estrato, 4,18 no segundo e 4,5 no terceiro.
“Há uma concordância espraiada. Ela fica clara na extrema direita, na direita e na centro-direita, pelos números da oposição e dos independentes, e mesmo na base o valor de 2,63 é significativo”, comenta o coordenador da pesquisa e cientista político Ricardo Braga, professor do mestrado em Poder Legislativo do Cefor, programa de pós-graduação ligado à Câmara dos Deputados.
Apesar dessa presença de adeptos da pauta em todas as frentes, quando questionados sobre as chances de aprovação da medida dentro dos próximos seis meses, apenas 19,58% dos congressistas projetam essa possibilidade para a PEC, com parte deles prevendo altas chances (14,29%) e outra parte (4,29% do total de entrevistados) vislumbrando “chances muito altas” para a proposta. Outros 31,43% veem chances “muito baixas” e 15,71% projetam “chances baixas” de sinal verde para o texto.
“Quando os deputados se dizem a favor de uma determinada pauta, mas afirmam que a chance de aprovação dela é pequena, significa que sabem que atores importantes dentro do processo serão contrários, ou seja, os caciques do Congresso, que são os caras que têm uma noção maior do impacto institucional de uma medida dessa. Tem as pressões políticas, as pressões que vêm do próprio Judiciário, as pressões que tendem a vir do Executivo. É o jogo de forças natural para esse tipo de decisão”, traduz Braga.
A afirmação se coaduna com informações divulgadas nos últimos dias pela imprensa de que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), teria sinalizado a líderes partidários que colocaria freio na agenda. Nos bastidores, Lira cultiva uma dívida de gratidão com a Corte porque, entre outras coisas, no ano passado o STF arquivou uma investigação sobre suspeita de desvios de kits de robótica em Alagoas que atingia aliados seus. Além disso, o presidente deixará o cargo em fevereiro do próximo ano e tenta hoje construir um caminho que lhe permita manter alguma relevância política após perder o poder da caneta.
“Enquanto o dito ‘baixo clero’ olha prioritariamente para suas pautas próprias e seu eleitorado, considerando a possibilidade de impactar diretamente seus eleitores, o ‘alto clero’, aqueles que controlam a agenda, estão inseridos em outro contexto, no qual o relacionamento com os outros Poderes e também considerações mais gerais sobre a pauta de forma ampla são levados em conta. Os controladores da pauta é que fazem baixar as chances de aprovação, mesmo que a matéria tenha um apoio difuso”, analisa Braga, ao mencionar o cenário em que está imersa hoje a proposta.
Resgate
O cientista político e doutorando da Universidade de Brasília (UnB) Danilo Morais, que pesquisa o empoderamento judicial como correia de transmissão de valores neoliberais, sublinha que o cenário atual da relação entre os Poderes precisa ser encarado à luz do rastro deixado pelo processo de impeachment que depôs Dilma Rousseff (PT), em 2016. “A crise do impeachment de Dilma desmantelou a coluna cervical do sistema político ao suprimir, da alçada do Executivo, um conjunto de ferramentas persuasivas, que, na mão do governo, incentivavam a cooperação parlamentar, em um regime presidencialista que elege tendencialmente uma bancada minoritária”, afirma, ao citar especialmente as mudanças na gestão do orçamento da União.
Alexandre de Moraes / Alejandro Zambrana/Secom/TSE
Questionado sobre a relação entre a lógica de separação dos Poderes e as decisões monocráticas, Morais resgata que o empoderamento judicial teve início no mundo na década de 1970, com o advento do neoliberalismo. Ele lembra que o período foi o mesmo de emergência de poder de bancos centrais e agências reguladoras em geral. “Com a inclusão de novos atores antes excluídos no sistema político (mulheres, negros, indígenas, analfabetos etc), as elites consentiram com o deslocamento estratégico de decisões da esfera política, constituída por agentes eleitos, para arenas tecnocráticas, sem controle popular. Essa tentativa de ‘despolitizar’ decisões relevantíssimas e compromissá-las legalmente com a gramática neoliberal, a pretexto de neutralidade científica, é facilmente verificável em democracias novas e antigas mundo afora”, observa.
O pesquisador entende que a decisão da Corte sobre o piso nacional da enfermagem – engatada por Barroso e, na sequência, confirmada pelo plenário – atende a essa lógica. “Neutraliza conquistas da classe trabalhadora organizada a pretextos fiscalistas, acusando os poderes eleitos de irresponsabilidade. O Congresso aprovou leis e emendas à Constituição [sobre o piso], enquanto o patronato recorreu, sem alarde e com sucesso, a uma liminar monocrática do ministro Barroso, depois confirmada pelo colegiado. É como se [o fato de] um poder eleito decidir em conformidade com as demandas populares fosse não um resultado normal da democracia, mas uma deformação populista”, critica.
Danilo Morais pontua que essa dinâmica cumpre o rito liberal, atendendo à idealização pensada por intelectuais do segmento no século 18. “Na teorização dos freios e contrapesos, os teóricos do liberalismo clássico não apostavam na boa intenção ou na candura das elites governantes, mas justo em seu autointeresse e impulso maximizador de sua autoridade.”
Edição: Thalita Pires