Brasília, 27/12/2024

Reação de governadores a decreto de Lula é uso da ‘violência policial como plataforma política’

Igor Carvalho
Brasil de Fato | São Paulo (SP) 

O decreto do Ministério da Justiça que regulamenta o uso da força por policiais gerou atritos entre o governo federal e governadores de partidos de oposição. Publicado nesta terça-feira (24), o texto prevê que o uso de armas de fogo deve ser restrito a situações de último recurso, além de estabelecer normas sobre abordagens e uso da força física.

A medida foi criticada pelos governadores Cláudio Castro (PL-RJ), Ronaldo Caiado (União Brasil-GO) e Ibaneis Rocha (MDB-DF). Já o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, defendeu a necessidade de padronizar as ações policiais após mais um incidente no Rio de Janeiro (RJ), onde uma jovem foi baleada por um policial rodoviário federal na véspera do Natal.

Embora o decreto não seja de cumprimento obrigatório, ele estabelece que o acesso a recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) será condicionado à adesão às diretrizes. O governo federal busca, assim, implementar as regras nos 26 estados e no Distrito Federal. Governadores, contudo, reagiram duramente, alegando que a medida representa interferência federal na segurança pública, uma área de responsabilidade estadual.

Cláudio Castro anunciou que o estado do Rio de Janeiro acionará o Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender o decreto. “Nós do Rio vamos entrar imediatamente com uma ação no STF para cassar esse absurdo. Espero que a população cobre dos responsáveis por esse decreto quando bandidos invadirem uma residência, roubarem um carro ou assaltarem um comércio”, declarou Castro, em entrevista coletiva concedida no Palácio das Laranjeiras, sede do governo fluminense.

Ronaldo Caiado classificou a medida como “chantagem explícita”, argumentando que o governo federal está impondo suas diretrizes aos estados ao atrelar os repasses do FNSP ao cumprimento das regras. “Trata-se de um presente de Natal ao crime organizado, ao engessar as forças de segurança e favorecer a criminalidade”, disse o governador.

No Distrito Federal, Ibaneis Rocha acusou o governo Lula de ultrapassar os limites constitucionais ao interferir na segurança pública estadual. “Interferência total. Uma pena que o governo federal, ou melhor, o presidente Lula, não saiba seu espaço. Quem faz segurança pública são os estados”, afirmou.

O decreto determina que o uso de força letal deve ser restrito a situações extremas e obriga as forças de segurança a realizar treinamentos anuais sobre o tema. O ministro Lewandowski justificou a medida como necessária para coibir abusos e proteger cidadãos. “A força letal não pode ser a primeira reação das polícias. É preciso que a abordagem policial se dê sem qualquer discriminação contra o cidadão brasileiro”, afirmou o ministro, que também adiantou a intenção de acelerar a regulamentação do texto.

Descontrole da polícia

Ex-presidente do Conanda e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o advogado Ariel de Castro Alves defende a norma elaborada pelo governo federal.

“Esse decreto é bastante importante. Existe hoje um descontrole total das polícias no Brasil, principalmente das polícias militares, que agem como se tivessem carta branca dos governadores para promoverem abusos e descontrole do uso da força. Infelizmente, isso faz parte da tradição de nosso país”, afirma Alves.

Já o tenente-coronel aposentado da PM Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), não acredita que o decreto traga mudanças substanciais. “Eu não acredito que o decreto possa influenciar positivamente na mudança dos índices de letalidade policial. O decreto repete o que já aparece nas normas da polícia ou em legislações brasileiras”, lembra.

Ainda de acordo com Souza, o “decreto é uma propaganda do governo federal para dizer que está fazendo algo pela segurança pública. É mais uma peça de marketing do que uma ação para reduzir a letalidade policial.”

Para Orlando Zaccone, ex-delegado da Polícia Civil e mestre em Ciências Penais, o decreto, de fato, incide em normas que já foram previstas em regimentos das corporações e pela legislação brasileira. “O termo não deveria ser ‘restringe o uso de arma’, mas ‘regulamenta’.”

“Os limites dessa legítima defesa é que têm sido questionados, principalmente a partir da utilização de câmeras por policiais, que revelaram ao Brasil que esse uso de arma de fogo pela polícia é feito de forma desproporcional, principalmente ceifando vidas de pessoas que estão desarmadas.”

2026 no horizonte

Sobre as críticas dos governadores, os especialistas foram unânimes na análise de que as manifestações são motivadas por posições políticas.

“Por que essa velocidade veemente em criticar um decreto, se ele ainda nem está regulamentado? Eu não tenho dúvidas que está em jogo o 2026. O tema da segurança pública entrou na pauta política de forma que eu acho difícil reverter”, afirmou Zaccone, que alertou para os possíveis novos passos dos governadores de oposição.

“Há quarenta anos, o uso desproporcional de arma de fogo pela polícia tem sido a marca das políticas de segurança. Essa política de segurança com derramamento de sangue não gerou nenhum efeito positivo na segurança pública, os índices criminais aumentaram. Ou seja, a violência policial em nada contribuiu para melhorar o quadro da segurança. Agora, eles vão dizer que o que piorará o quadro é o controle das armas. Estranho”, lamentou Zaccone.

Para Ariel de Castro Alves, “essas manifestações de alguns governadores evidencia o quanto eles se utilizam da violência policial como plataforma política. Eles sabem que a violência policial conta com o apoio de diversos setores da sociedade, principalmente as elites. Eles querem manter uma polícia que mata, corrompe e tortura. Os que estão reagindo são coniventes com essa polícia que tortura e mata.”

Alves acredita que, para o texto ser relevante, é necessária uma articulação ampla. “Para que esse decreto saia do papel e funcione, [é preciso que] o Ministério da Justiça, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos se reúnam com as secretarias de Segurança Pública dos estados e dos municípios, para tratar do uso das armas pelos agentes. É necessário que todos os promotores do país sejam treinados e motivados para trabalharem no controle da atuação policial.”

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