Brasília, 01/10/2024

Brasília, 01/10/2024

Ufanismo da ditadura e desprezo ambiental comprometeram projeto da BR-319

Gerson Severo Dantas – RealTime1

Manaus – A construção da rodovia BR-319, a Manaus-Porto Velho (RO), integrava a concepção nacionalista da ditadura militar expressa no slogan “integrar para não entregar” e a doutrina da segurança nacional.

Neste sentido, ela fazia parte de um conjunto de rodovias que visavam retirar a Amazônia do isolamento do resto do País e da ‘cobiça internacional’, uma preocupação de analistas que sentiam que a economia e os mercados globalizados já estavam estruturados e devidamente disputados, desde os anos 1970, não por acaso datação do início da construção da rodovia que, ao ser definitivamente restaurada, fará a integração de Boa Vista-Manaus, via Porto Velho, ao Brasil, e no sentido inverso, do Brasil a Porto Velho-Manaus-Boa Vista e ao resto das Américas.

Neste pacote, batizado de Programa Nacional de Integração (PIN), estavam as rodovias BR-230, a Transamazônica; BR-210, a Perimetral Norte. a BR-174, a Manaus-Boa Vista (RO), a BR-163, Santarém-Cuiabá (MT), e claro, a BR-319, Manaus-Porto Velho, que ficou travada justamente no Trecho do Meio, transformado em uma encruzilhada onde se concentram, ainda hoje, dúvidas sobre qual direção tomar (desde que chegue a Porto Velho).

À época, o sociólogo Octavio Ianni (1926-2004), analisava que a doutrina da Segurança Nacional tinha o objetivo de transferir para a Amazônia aproximadamente 500 mil pessoas, aproximadamente 100 mil famílias cuja migração para a região seria facilitada pela distribuição gratuita de lotes de terras e crédito abundante para desmatar e iniciar a produção agrícola – tudo o que um país, que jamais fez uma reforma agrária, nem quando da Abolição da Escravidão, precisava para estancar as mobilizações populares pelas Reformas de Base, que seriam de inspiração comunista, como apontava o clima de teoria da conspiração da Guerra Fria (1947-1991) .

Essas pessoas deveriam receber lotes numa faixa de 10 quilômetros de cada lado das estradas integrantes do PIN. O potencial de desmatamento era grande e foi o que aconteceu em locais onde a floresta deu uma “colher de chá” para os colonos, como em Rondônia e Pará. As promessas de apoio logísticos e de acesso aos insumos e crédito bancário e a escolas e assistência médica jamais foram cumpridas. Os recém-chegados foram abandonados.

No Amazonas e nas BRs que cortam seu território, a floresta densa, as condições climáticas e sanitárias impediram o progresso esperado pela ditadura militar com a colonização estimulada e ufanisticamente comemorada ao longo da construção das rodovias e no dia da inauguração da BR-319.

BR-319,Manaus-Porto Velho,Mario Andreazz,Danilo Mattos Areosa,João Walter de Andrade
Inauguração da BR-319 mobilizou amazonenses em frente ao IEA, em 1976

Entusiastas da construção, o então ministro dos Transportes, o coronel Mario Andreazza, o governador do Amazonas, Danilo Matos Areosa, e o então superintendente da Zona Franca de Manaus e sucessor de Areosa no governo do Estado, coronel João Walter de Andrade, foram protagonistas de uma ampla reportagem da revista O Cruzeiro, uma das mais importantes do País no início dos anos 70, cujo título era “BR-319, A Estrada da Coragem”.

BR-319,Manaus-Porto Velho,Mario Andreazz,Danilo Mattos Areosa,João Walter de Andrade
Revista O Cruzeiro, uma das mais importantes do País nos anos 70, mostra a saga de construção da 319

No trabalho jornalístico, os repórteres Ubiratan de Lemos e Indalécio Wanderley mostram o entusiasmo das autoridades com o avanço das obras, os desafios da engenharia, as dificuldades de vencer a selva, a malária e as chuvas, bem como o projeto de “integrar para não entregar”.

“Os que diziam não e mostravam seus argumentos, cifras e (problemas) geológicos foram perdendo terreno para o otimismo desbravador. Havia guerra entre os que pediam o impossível (a estrada). Teimavam deste lado Areosa, João Walter e mais acima Mário Andrezza”, escrevem os repórteres, que comparam o coronel do Exército de origem gaúcha ao bandeirante Fernão Dias Paes Leme.

Eles também narram os desafios enfrentados pela construtora Andrade Guttierres, uma das maiores empreiteiras brasileiras e responsável pelas obras e cujo responsável era o engenheiro Eliseu Rezende, posteriormente Ministro dos Transportes no governo de João Figueiredo (1979-1985).

BR-319,Manaus-Porto Velho,Mario Andreazz,Danilo Mattos Areosa,João Walter de Andrade
Mario Andreazza, ministro dos Transportes de Emílio Medici, e Elizeu Rezende, que ocupou o mesmo cargo no governo João Figueiredo

“Só era possível trabalhar nos seis meses de verão., com o sol rachando de cima e pequenas chuvas intervalando os dias. No inverno era o dilúvio. Chovia toneladas o dia inteiro. Um mar caindo sobre a mata. O equipamento pesado se afundando na terra. Os grandes temporais amazônicos arrasando qualquer iniciativa de desmatamento”, relatam Ubiratan e Indalécio, em trecho da reportagem.

Os repórteres traduziram em números gigantescos o desafio de vencer a selva e fazer a interligação entre as duas capitais da Amazônia Ocidental. “Há dois anos, quando começou o duelo do homem contra a natureza, era de desanimar. Uma frente saindo de Porto Velho e outra saindo de Manaus. Setenta máquinas pesadas na terraplanagem, mais cem viaturas corridas, mil homens de machado na mão ou em cima das máquinas”.

O relato mostra que não havia na época qualquer preocupação com impactos ambientais e o que importava era vencer a selva, impor a ela a vitória da civilização que avançava armada, o que fica bem claro no relato de um engenheiro da Gutierrez.

“No começo a malária era o pior risco, até os macacos tremiam nas árvores”, ironizava o profissional, que revelou ainda que 102% dos trabalhadores já haviam contraído a doença ( o que indica que alguns pegaram mais de uma vez malária).

Os repórteres também se admiravam com a disposição de Mário Andreazza para percorrer os canteiros de obras e animar os trabalhadores, a pedido do engenheiro Sérgio Monteiro, líder, também, do trabalho em campo.

Naquela época, além de tocar o PIN, Andreazza era na ditadura militar a face modernizante do País, que se endividava para construir essas estradas e tocar obras como a ponte Rio-Niterói e as usinas hidrelétricas de Itaipu, no Paraná, Tucurui, no Pará, e Balbina, no Amazonas.

Nesse trabalho de relações públicas, Andreazza inspecionou detalhes técnicos, como a espessura da base da estrada, e a pavimentação com pedras que eram trazidas de Moura, distrito do município de Barcelos, a mais de 300 quilômetros de distância das obras.

A reportagem também mostra com clareza qual o objetivo da construção da BR-319: ocupação e exploração das riquezas regionais. Num dos trechos mais impactantes para quem lê com os olhos de quem tem as preocupações ambientais de hoje, eles escrevem:

“O governo vem facilitando tudo. Dá terra e crédito para quem quiser fazer dinheiro naqueles longes (terras distantes). A região tem futuro. A estrada vai se entroncar com a Transamazônica, em Humaitá, e como ligará Manaus com Porto Velho terá um tráfego grosso. Atravessa campos gerais, a partir de Humaitá, de bom proveito para a pecuária. Cruza mananciais de cassiterita, matéria prima do Estanho. (…) além disso o minério está na flor da terra dando a maior sopa”.

Por fim, eles concluem: “Esses atrativos – e principalmente terra de graça e crédito de prazo longo e juros baratinhos – devem funcionar como chamamento para colonização”.

O otimismo das autoridades dos tempos da ditadura, do Brasil Grande, do Brasil Ame-o ou Deixei-o, em parte se cumpriu no Estado vizinho de Rondônia, onde o agronegócio aproveitou os campos naturais, explorou a mineração, inclusive em terras indígenas, mas no longo prazo, bastou dez anos a partir de 1976, quando a BR-319 foi inaugurada, para a natureza impor uma derrota a todo aquele entusiasmo.

A estrada foi fechada, os colonos foram abandonados e hoje a tentativa de reconstrução esbarra no necessário cuidado ambiental que na época as autoridades e os colonos sequer imaginavam eram necessários para não destruir o lugar de riquezas.

Tags

Gostou? Compartilhe!

Leia mais